
De repente um barulho estranho,
abafado, seco, parecia ter vindo da grande casa amarela onde vivia uma
professora aposentada e seu filho que aparentava estar na faixa dos 20. O
estranho barulho fez com que Rafael pulasse assustado de sua cama onde estudava
em meio aos livros de Biologia. Ele correu até a janela e afastou a cortina
para olhar pra fora, de movimento somente a chuva torrencial que caia na fria
tarde de verão. Era sábado, tudo aparentemente estava calmo, mas a calmaria era
rotina na rua das Macieiras então não havia motivo para Rafael estar preocupado
o que o levou a voltar para seus estudos. Afinal, ele estava quase terminando sua tese de mestrado na área de autópsia. Rafael era um jovem de
25 anos, magro, estatura mediana, cabelos e olhos castanhos claros, um moço
introspectivo e inteligente que estava concluindo sua pós-graduação em nível de
mestrado de uma renomada universidade federal. Rafael perdeu a concentração,
não conseguia mais fixar a cabeça nos estudos, seu pensamento mergulhara
naquele clique seco que para ele era o som de um disparo de arma de fogo. Ele
foi até a cozinha preparar um chá, mas resolveu beber vinho, serviu-se e voltou
para o quarto; outro barulho, a taça na mão de Rafael se estilhaçou no chão
manchando de vinho o tapete branco que decorava o piso do quarto, mesmo tomando
um susto ele correu até a janela e olhou novamente para a casa amarela, mas não
viu nada. Porém, ele sabia que o barulho tinha vindo de lá. A casa era de
frente pra dele, a única casa vizinha da rua, só uma quadra depois haveria
novos vizinhos. Estranho, muito estranho, pensou Rafael que cogitou a
possibilidade de ir até lá e foi. Vestiu um moletom e uma capa de chuva e foi
até a casa amarela, bateu na porta que fora atendida pela tal professora.
- Precisando de alguma coisa
Rafael? – Perguntou ela estampando no rosto um simpático sorriso.
- Está tudo bem por aqui? –
Perguntou ele avistando dali mesmo da porta o filho da professora que assistia
televisão e lhe acenou. – Digo, eu escutei dois barulhos, pareciam tiros.
- Tiros? Em nossa rua Rafael?
Você ouviu algo filho? – Perguntou ela dali mesmo.
- Não – respondeu o jovem vindo
até a porta. – Oi Rafa – cumprimentou ele.
- Oi – cumprimentou sem jeito. –
Então vou voltar pra casa, descansar um pouco.
- Faça isso e qualquer coisa
estamos aqui – disse a professora fechando a porta enquanto Rafael descia uma
pequena escada de concreto quebrada. – Uma casa tão bonita com um escada tão
feia – pensou ele.
Enquanto cruzava a rua das
Macieiras seus pensamentos reproduziam aquele barulho estranho, Rafael tinha
certeza que era tiro, dois tiros e que vieram da casa amarela. Mas, ali estava
tudo bem. Ele entrou em sua casa e foi limpar os cacos e enrolar o tapete colocando-o
próximo a porta da cozinha para depois lavar. A essa altura o relógio marcava
vinte uma hora. Era verão, escurecia tarde. Rafael tomou um banho, preparou um
macarrão ao molho branco, serviu-se de vinho e jantou assistindo uma série
policial na TV. Limpou a cozinha e foi para o quarto meio tonto da garrafa de
vinho que bebera, jogou-se sobre a cama e apagou a luz quando o relógio marcou
uma da manhã. Quando pensou em adormecer ouviu a batida de uma porta de carro,
correu até a janela tropeçando sobre a escrivaninha caindo sobre as coisas, fez
uma certa bagunça.
- Efeito do vinho - disse pra si mesmo rindo e se recompondo.
Chegou à janela e afastou cuidadosamente
a cortina. A professora e seu filho estavam em atitude suspeita. Ela olhava
para todos os lados enquanto o filho colocava com muito trabalho três sacos
pretos dentro do porta mala do carro para
deixar o local em seguida.
- Meu Deus! Eles mataram uma
pessoa – pensou ele pasmo, fechando a cortina.
Voltou pra cama e ficou atônito
olhando para o teto. Por sua cabeça passava de tudo e para ele o mais estranho
é que nunca vira ninguém na casa amarela, só mãe e filho. Assim, dormiu.
Acordou com uma batida forte na sua porta, levantou e viu que já passavam das
quatro da tarde, sonolento foi atender.
- Bom dia! – Cumprimentou um
policial sisudo. – Senhor Rafael?
- Sim eu mesmo – respondeu ainda
tonto.
- Você está bem senhor? –
Perguntou o policial ao perceber o odor de álcool vindo do jovem.
- Estou sim – respondeu Rafael. –
Ressaca apenas.
- Então o senhor bebeu? –
Perguntou o policial fazendo anotações em um bloco de notas.
- Uma garrafa de vinho. Mas,
por que o senhor está aqui?
- Posso entrar?
- Responda primeiro minha
pergunta – disse Rafael em tom nada agradável.
- O que é aquilo naquele tapete?
– Perguntou o policial ao ver o tapete manchado na porta da cozinha nem dando
importância ao questionamento do jovem. – Posso ver senhor?
- Aí, entra, aquilo é vinho –
disse Rafael cujo corpo parecia mais pesado que o comum e jogou-se sobre o sofá
enquanto o policial ia até o tapete analisá-lo.
- Parece sangue – disse o
policial anotando.
- O quê? – Indagou Rafael
saltando do sofá. – Sangue? Ta brincando.
- Não, não estou – respondeu o
policial seriamente. – O senhor deve me acompanhar até a delegacia.
- Por quê? – Indagou assustado.
- Ontem um jovem e uma senhora saíram de casa por volta das 4 da tarde e não
voltaram, sendo encontrados hoje por nossos cães farejadores enterrados a cerca
de 20 km daqui. Segundo o legista a morte foi causada por tiros. Ainda que ambos os
corpos estivessem em pedaços.
- Foram eles – disse Rafael em
pânico apontando para a casa amarela. – Eu ouvi os tiros e os vi colocando
sacos pretos dentro do porta mala hoje a uma da madrugada.
- Eles quem? – Quis saber o
policial.
- A professora e seu filho que
moram na casa amarela – respondeu Rafael que andava com certa perturbação de um
lado para o outro.
- Meu senhor, ali não mora
ninguém – respondeu o policial. – É melhor o senhor me acompanhar até a
delegacia.
- Mas eu falei com eles ontem.
- O senhor está bêbado e há
fortes indícios de que o senhor esteja envolvido no crime. É melhor me
acompanhar – disse o policial bastante alterado e com a mão próxima a arma.
- Tudo bem, eu vou – disse Rafael
assustado seguindo-o até a viatura. – Você veio sozinho?
- Sim senhor – respondeu o
policial ligando o carro e deixando o local com o jovem.
- Geralmente vocês nunca andam sós.
- Hoje vim só – disse o policial
seguindo até um local deserto. – Desce do carro, por favor – pediu gentilmente.
- Onde estamos? – Perguntou
Rafael assustado. - O que vai fazer comigo?
- Olhe – pediu o policial
mostrando três sacos pretos rompidos com restos mortais dentro.
- O que é isso? Não pode ser –
disse Rafael altamente perturbado andando envolta do que um dia fora um corpo.
– Sou eu.
- Sim senhor, esse é você. E essa
aqui é a professora – disse o policial apontando para os restos mortais de uma
mulher.
- Mas como? – Indagou o jovem.
- Vou te contar como tudo
aconteceu – disse o policial.
“Era uma tarde de verão chuvosa e
João, o filho da professora Marisa havia tido uma discussão com a mãe que
acabou em tragédia. Nesta tarde o senhor concluía sua tese de mestrado e ao
ouvir o barulho do tiro que atingira fatalmente Marisa, correu até a casa
amarela e encontrou João desesperado com as mãos sujas de sangue sobre o corpo
da mãe. Ao vê-lo João lhe pediu ajuda e disse que foi um acidente, você
acreditou nele e o ajudou a encobrir o crime. Como você era formado na área,
você com a ajuda de João, cortaram Marisa anatomicamente e a colocaram num saco
de lixo no porta-mala do carro. Você então o trouxe para sua casa; vocês jantaram
e tomaram uma ou duas garrafas de vinho e deitaram sobre sua cama e ali se
amaram perdidamente. Mas, você acordou perturbado, não acreditava que havia
cometido um crime e ainda por cima passado a noite com um homem. João saiu da
cama assustado dizendo que iria embora, mas você disse que se ele fosse você o
mataria. Iniciou-se uma briga, era objeto para todos os lados de repente João
pegou a arma e lhe deu um tiro na cabeça e você caiu sobre o tapete do quarto,
tapete este cuja marca se assemelha com vinho. João havia aprendido a lição
anatômica e o cortou como você o havia ensinado e o colocou em dois sacos de lixo,
enrolou o tapete deixando-o próximo a cozinha, pôs os três sacos de lixo no
porta mala do carro e aqui os enterrou indo embora depois. Marisa conseguiu
deixar seu corpo e partir, já você ficou preso a sua culpa, àquela rua e
àquelas casas adaptando uma história na sua cabeça por anos, mas hoje é o dia
de você se perdoar e partir é por isso que eu estou aqui – concluiu o policial ao instante que os restos mortais desapareceram
bem como a viatura”.
- Como sabe disso tudo? Você está
morto? – Indagou perplexo Rafael.
- Eu acabei de morrer, trabalhei
por oito anos como policial e fui assassinado hoje numa perseguição a bandidos.
Tive uma vida de luta combatendo o crime apesar de eu ter cometido dois durante
minha vida. Hoje Rafael eu venho te pedir perdão e pedi que você siga sua
jornada espiritual.
- Seu nome? - Perguntou Rafael.
- João - respondeu ele.